28 de fevereiro de 2011

RSF*



O céu era uma pintura pálida, uma pintura azul muito pálida, de um azul acinzentado mas muito pálido, combalido, decorado com manchas cinza pálidas, não de chumbo mas brilhantes como chumbo só que não pesadas, não tão pesadas como o chumbo do céu nos dias de trovoada. O céu não era um reflexo nem uma estrada, o céu fora apenas aqueles momentos em que ele o fitara, distraído, uns segundos entre passos, uns minutos depois, quando tinha parado e nada o acompanhava. A brecha entre os pensamentos que tivera até chegar e o que pensava fazer dali para a frente.
Sentiu as chaves na algibeira do casaco, no lado direito, sorriu, a tal que se rompia sempre. Tacteou no bolso esquerdo das calças o isqueiro e o tabaco e lembrou-se de quando a vontade de fumar era incontrolável, não começava a fazer nada sem que acendesse um cigarro. Sorriu. Já passara.
Por mais que me tente a ser como os demais, pensou, não consigo, não sei como ser, não consigo parecer o que não sou. Se quiser, talvez saiba inventar, talvez consiga criar uma personagem, escrever-lhe um guião, marcar-lhe as zonas de palco e delimitar-lhe os movimentos ao lhe delinear as falas, a postura, a colocação da voz e da figura. Tornou a sorrir e entrou no pequeno bar da esquina onde se movimentavam as parcas pessoas que, de passagem, bebiam um café de fugida, curto e forte, ou as que levavam uma sandes ou croissant, frescos, confeccionados de madrugada. As que tomavam o pequeno-almoço atravancando o espaço vinham depois, cerca de uma ou duas horas depois, quando o sol já raiava as oito da manhã. Tomou café e saiu. Atravessou para o outro lado da rua. Esperava.

Empresta-me a tua alma que eu conduzo-te pela mão no interior da minha, empresta-me a tua carne e eu dou-te a minha pele, toda a minha pele, para com ela talhares e cozeres um extraordinário vestido, ou fiares, numa roca prodigiosa, puxares à fieira e depois teceres o mais belo xaile onde te aqueceres e refugiar.
Usa, vá, toma esse teu xaile que é feito de mim e não vais saber mais que eu já sei de ti. Aquece-te, que o frio não é nada. Refugia-te na ideia que te existo mas o fio da minha pele está comigo.

Não mais uma pintura, o céu era apenas uma coisa para lá dos topos dos edifícios velhos, para além dos recortes altos dos edifícios cinzentos e velhos, de um cinzento manchado, carcomido e gasto. O céu agora não interessava nada. Eram os edifícios envenenados pelo chumbo da exaustão dos dias, os séculos de erosão salgada, era o cinzento, aquele cinza doente, desde as frontarias com manchas pálidas, depois mais escuras, amarinhando pelas fachadas mescladas e combalidas, eram aquelas presenças mórbidas e frias que lhe deixavam o olhar sem espaço para mais nada. A brecha entre os pensamentos que o levaram e a fenda da espera, não era o céu, sequer uma estrada.
Acendeu um cigarro e fumou, calmamente, tão calmo que até se estranhou a si mesmo. Parecia que em cada espaço entre inspirar e soltar o fumo lhe batia o coração mais lentamente, num compasso deleitado. A madrugada estava fria e ao ajustar o casaco sentiu a diferença no peso do lado esquerdo, sorriu, tacteou o frio metálico dentro da algibeira, esguio. Era estranho pois nunca tinha andado assim, mas sabia o porquê daqueles minutos que o detinham em demora, aquela espera diferente sem ter obrigações ou compromissos. Era diferente aquela espera. Era diferente estar ali. Um novo magote de gente no passeio defronte. Acabou o cigarro. O semáforo estava vermelho ao trânsito e atravessou calmamente.

Empresta-me a tua alma e eu conduzo-te pela mão ao interior da minha, empresta-me a tua carne e eu dou-te a pele, a minha pele, toda a minha pele para secares e curtires e com ela fazeres o melhor casaco para te iludires, pensares que ficas bonita, por fora, quando não prestas dentro. Um casaco para apertares bem em volta do corpo nesse frio que és e sufocares lá dentro. Aquece-te, que o frio não é nada, conforma-te na ideia que te existo pois o fio da tua vida está exangue.

Por mais que tente, pensou, não consigo ser como os demais, não consigo inventar e parecer-me com o que não sou. Tornou a entrar no pequeno bar onde agora já se acotovelavam pessoas, as que apenas queriam um café rápido misturadas com as que fincavam cotovelos no balcão para criar oportunidade em pedir galões e meias de leite, bolos e sandes aquecidas, tostas mistas, croissants de chocolate, arrufadas com queijo e fiambre. Vira-a entrar. Era a mão dela que esticava o dedo com a unha reluzente, era ela, a pulseira barulhenta com berloques foleiros assim o testemunhava. Com mais ou menos jeito entalou-se entre um fulano gordo e uma velha impaciente atrás dela. Tirou a mão esquerda do bolso onde já tinha aberto a navalha e mais ou menos empurrão espetou-lha nas costas, logo por baixo das costelas. Recuou, lentamente, deixando a vida própria daquele aglomerado ruidoso de gente obstinada em chegar á frente, em entrar, cuspi-lo de volta, para a porta, onde mais gente continuava a chegar, onde ele se encontrou depositado sem esforço pela inércia. Sorriu. Tinha chegado quase ao balcão mas como recuara, parecia que aquela massa informe de seres humanos o rejeitara, aquela amostra de colectivo de humanidade segregara-o com a maior das naturalidades. Tornou a sorrir.
Se ela gritara, era mais uma de tantas outras vozes a gritar isto ou aquilo num pedido impaciente e nervoso, uma observação parva, uma exigência qualquer. Talvez somente reparassem mesmo nela quando caísse, abandonada, tombasse, a estorvar no chão, talvez ainda a mexer ou de olhos arregalados e estáticos mas o corpo a estorvar e a mancha de sangue, lentamente, a sujar os ladrilhos, a alastrar, a estorvar no chão.
Então pensou que, se realmente quisesse, talvez soubesse inventar, talvez conseguisse mesmo criar uma personagem, escrever-lhe um guião, marcar-lhe as zonas de palco e definir-lhe os movimentos ao lhe delinear as falas, a postura, a colocação da voz e da figura. A vida é um palco. A vida é uma questão de rectidão, de postura ou falta dela. A vida é uma sensação, uma questão de tempo, mas mais que uma actuação ela é tudo e tanto, sem ou com senãos.



*(Excerto)
2011