A iluminação não era das melhores, a altura estava desajustada,
quiseram que falasse e a luz era demasiado forte. Depois de três cervejas com
um dos organizadores, corriam-me gotas salgadas pelas frontes, ardiam-me os
lábios porque ventava, muito, “chegas lá e pintas, só isso”, tinham-me dito.
Latejava com febre.
Pesei a tela de dois metros por quase cinco, já não me lembro bem,
pesava bastante e “é fácil para quem está habituado a pintar grandes
superfícies”, carreguei com ela até ao palco, montei dois ou três suportes para
que nada descambasse. Sem que se visse, pois a ideia era essa: todo o fundo de
cena era o meu trabalho, aquele telão, meio pintado, mascarado, meio coberto de
jornais que, consoante o desenrolar dos acontecimentos, eu rasgaria. Pintava…
ia rasgando e pintava…
O prelúdio político discursou, o poeta começou então a declamar em
seguida e eu subira ao escadote para rasgar as primeiras folhas quando a luz
faltou. Deixei-me estar. Enquanto reparei nos desgraçados electricistas
esbaforidos, fui racionalizando as ideias e recapitulando os passos. Voltou a
luz e eu atirei-me do escadote abaixo, arrastando quase metade dos jornais,
peguei nos pincéis e espraiei-me nos contornos. Esperei que o poeta retornasse
e rasguei o restante. Entretanto fui para os cantos inferiores ainda em branco
e preenchi-os com a história que mal acabava de ser contada. Agachei-me
nauseado. Então, com a tela desnuda, pré-pintada, onde apenas sobrava o meio do
lado direito, vomitei. Ouvi aplausos. Sentia-me mal. Apanhei os dejectos com a
rodilha das mãos e atirei-o para um canto. Depois, com a primeira lata de tinta
que encontrei à mão, conquistei o pedaço de tela que faltava com um arremesso
violento! Alguém rebolou uma lata de cerveja na minha direcção: “não pares,
está fenomenal”, e eu nem sequer ouvia já os actores atrás que desenvolviam a
peça que tinha sucedido ao poeta. Levantei o pano e assoei-me. Depois de tragar
toda a cerveja com a garganta a doer, disse: Terminei!
Fartei-me de caminhar até Lisboa com as telas debaixo do braço, os
catálogos e o curriculum numa pasta amachucada. E gostavam mas comentavam:
“trouxe isso tudo para quê?”, as mãos tremiam, doíam-me os braços mas o maior
peso era da alma, ferida, que me doía mais que as pernas cansadas. As fotos
ficavam, olhadas de relance e não apreciadas, “você disse que era?...”, evocava
o nome de quem me tinha enviado o convite para casa, “sim, mas, essa
inauguração já passou!”, isso sei eu, caramba, “só estou aqui para mostrar os
meus trabalhos!”, quase nem um ruído, apenas um esgar torcido, meio
descontente, meio incomodado, “como disse que se chamava?...”.
Fui direito ao lavabo e deixei correr a água para amaciar a camada multicolor
que me cobria as mãos. Peguei no sabão e na escova e esfreguei até me doerem os
sabugos, até não sentir as pontas dos dedos. Senti-me mal! Senti-me mal porque
não me maravilhei com o caleidoscópio das cores das tintas a rodopiar até ao
ralo do lavatório. Olhei apenas para o final, o misto cinzento impessoal.
Senti-me realmente mal! Tinha as mãos a latejar, ásperas e grossas, incapazes
de pintar. Procurei em vão um pouco de creme, um pouco de algo mais em que
esvair o meu pensar… Musica? Comer? Não tinha fome de mastigar, não consegui
fazer nada a não ser arquejar com falta de ar. A dor era maior que a fome,
maior que a falta, maior que o meu ser ao estar. Consegui lembrar-me da forma
como queria estar de modo a sentir o sonho partilhado. E foi doloroso! Mais
valia não me ter recordado!
Metade das fotos perderam-se nos buracos por onde passei, outra metade
foi-se dentro dos buracos causados pela minha maneira de ser: traga para eu
ver, solícitos, traga para eu mostrar, mentirosos, traga que eu logo vejo o que
posso fazer, os falsos. Metade respondeu que estava ocupada ou que tentara e o
tempo não ajudava, a outra parte retorquia que não era ainda altura ou apenas
se silenciava.
As poucas coisas que dão vontade para sair daqui, tomam um aspecto
ridículo, uma querela parva, a recessão agnóstica e ácida que fere os olhos,
gasta e cáustica, prenhe no devir, perdidas em cada lágrima.
As próprias sebes diminuíam-se de frio, o vento estava forte demais,
até as próprias árvores tentavam encolher-se, inutilmente, como todos que
passavam no jardim rente ao rio. Os que passeavam, ou eram pederastas ou
drogados. Sem falsos pudores ou carimbos inusitados, a esta hora era a fauna
que transitava, mau agrado para quem apenas queria ir ali como a qualquer outro
lado. Lembrei-me do quanto era difícil retirar das mentes dos velhos esta
imagem, quando de tarde algum amigo dos pais nos via ir para ali com uma amiga,
amigo, namorada? Tristes. Capazes de nos condenar, mas não cientes de se
questionarem acerca das razões das suas fontes de informação também ali
estarem! Apenas a observar? Pior! Doentio, não?!? Mas ninguém, ninguém se
atreveu a questionar… apenas emprenhavam pelos ouvidos, admoestando filhos e
filhas, sem ligar à hipocrisia dos pseudo amigos!
Uma frincha meio aberta ou meio fechada, consoante o ponto de vista,
faz voar a razão extraordinária. Estava mesmo frio! Só um café, apenas uma
chávena quente e eu, ou… Foi assim que cheguei, foi assim que abandonei a
catástrofe inerente na curva das sobrancelhas e a outra, a dos lábios, velhacos
e mascarados. Sem que fazer, pensei, porque haveria ela de parar ali? Eu já era
um vegetal até então! Não havia necessidade de me ter possuído o corpo naquela
intensidade húmida e suada onde se me consumiu o resto da vida. Agora tenho as
costas doridas sem fazer nada. O pescoço hirto e umas dores que não me deixam
mover. Falta-me o sangue nos braços. As pernas tremem, por tudo e por nada.
“Adoro-te, também penso muito em ti, tenho imensas saudades tuas mas já não
estou apaixonada!” E deixou-me a alma abandonada.
O frio tinha uma razão, o frio dava uma saudade quente das velhas
tardes dormentes onde perdia as horas com imagens fictícias das tuas ancas e
dos teus seios, a ondular. O frio conservou-me esta imagem erótica, onde mais
nenhuma poderia estar. Contigo ao Luar? O frio tolhia-me as mãos e as ideias,
tal qual uma garra tétrica em redor do meu pescoço, uma vontade de alguém em me
esganar.
Que horas são? Retorno com a missanga etérea da vontade putrefacta do
apetecer estrangular alguém. Mas não tenho ninguém. Sinto-me velho. Cansado e
usado, passei do prazo, passei do limite em que algo bonito já não persiste. Em
mim, há uma força obtusa que resiste perante as melhores coisas que se me
deparam pela frente. Não quero crer mas é de um magnetismo inebriante,
inconsciente e desalmado. Grita-me aos ouvidos como que a mentalizar-me, “não
posso!”. É um gigante, um colosso! Assim fosse para enfrentar os desaires do
dia-a-dia. Destes dias que se me acumulam na pele em segundos, minuto após
minuto, pesando toneladas, ridículos e estúpidos, que me enxovalham sem querer…
impotente, feito trapo… um farrapo.
E a culpa não é do frio, a culpa não é do calor, a culpa não é do
tempo! Que culpa? Olho para o calendário e custa-me discernir o número que
pertence a este dia. Tanto desejo que eles não aumentem como lhes rogo que se
apressem e o próximo que não me trinque de novo o coração. Não vou para longe
porque desejo estar perto, não me quedo porque senão adormeço e quero estar
desperto. Que faço, então? Mantenho a insónia ou abandono-me nos braços do sono?
O sono que me remete aos sonhos da memória de ti, em tudo semelhantes aos
pesadelos habitados pela tua recordação.
2008
Olá pai :) Posso perguntar de quando é o quadro? Beijo
ResponderEliminarOlá... é de 2010 e chamei-lhe "Taurus". Em baixo à direita está lá a assinatura e data. Beijo.
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