"No silêncio desta
noite quente ainda não de verão mas de primavera que mal chegou a ser, de
andorinhas tardias e pólenes desorientados, até o som estava oco e parvo. Neste
calor, de silêncio cavado na maresia suave que o vento, ora sorvia, ora
soprava, nesta noite, até o descompasso do coração não lhe soava bem. Não.
— Viste ele?
— Ontem?
— Sim.
— Não. Aliás,
já não o vejo há uns quantos dias.
No silêncio,
com esta noite sentia as mãos, não lhe doía o corpo, sentia as pernas, não lhe
custava mexer da cintura para baixo, andava de um lado para o outro sem que as
grilhetas do tempo pesassem ao arrastar as palavras, ao arrastar o cansaço das
palavras, sem que o tempo fosse de chumbo, ferro, uma bola de ferro sem os
remates do grilhão da vida que prende aos pensamentos, nada. Não. No silêncio
desta noite de primavera que o verão prostituía ele respirava sem sequer ligar
ao som descompassado do coração que detinha, para lá de nada, o peito era uma
contradição.
— Sabes dele?
— Como assim?
— Ora… viste,
falaste com ele?
— Não, não,
desculpa, não tinha percebido.
— Pois….
— Que é que
queres dizer com isso?
— Nada, nada.
— Ora agora,
diz. Fala!
— Caramba,
falar o quê? Não percebeste.
— Já pedi
desculpa.
— Sim, mas não
te preocupaste com ele!
— Vou tentar.
— Caramba, que
raio de amigo és tu afinal!?
— Ora bolas,
não o tenho visto, só isso.
Todas as
tardes ela ia ao quiosque e depois ficava a fumar um cigarro lento como se
esperasse o autocarro. Mas nunca ia em autocarro nenhum, ia a pé. Atravessava o
estacionamento e depois atalhava caminho pelo descampado. Tantas vezes se
encontravam no trajecto que chegaram a trocar “olás”, cumprimentos de circunstância,
uns quantos “até amanhã” e, um dia mais frio, de lua obscurecida, ele comentou
acerca do frio e da humidade fora de época. Ela parou na conversa. Ele parou
pela conversa. No dia seguinte usou a conversa para se demorarem mais pelo
atalho costumeiro através do terreno baldio. Entre palavras espetou-lhe a faca
bem fundo logo a seguir ao externo e abraçou-a. Não a beijou. Calou-lhe
qualquer coisa na boca com a outra mão e cortou até ao baixo-ventre o mais
rápido que pode. Apenas um passo atrás e depois, enquanto ela caia, já ele
tinha chegado ao fim do baldio, sem pressas, atravessando a estrada."
*(excerto de texto não definitivo) - 2012