24 de agosto de 2012

No silêncio desta noite quente ainda não de verão*





    "No silêncio desta noite quente ainda não de verão mas de primavera que mal chegou a ser, de andorinhas tardias e pólenes desorientados, até o som estava oco e parvo. Neste calor, de silêncio cavado na maresia suave que o vento, ora sorvia, ora soprava, nesta noite, até o descompasso do coração não lhe soava bem. Não.


— Viste ele?
— Ontem?
— Sim.
— Não. Aliás, já não o vejo há uns quantos dias.

No silêncio, com esta noite sentia as mãos, não lhe doía o corpo, sentia as pernas, não lhe custava mexer da cintura para baixo, andava de um lado para o outro sem que as grilhetas do tempo pesassem ao arrastar as palavras, ao arrastar o cansaço das palavras, sem que o tempo fosse de chumbo, ferro, uma bola de ferro sem os remates do grilhão da vida que prende aos pensamentos, nada. Não. No silêncio desta noite de primavera que o verão prostituía ele respirava sem sequer ligar ao som descompassado do coração que detinha, para lá de nada, o peito era uma contradição.

— Sabes dele?
— Como assim?
— Ora… viste, falaste com ele?
— Não, não, desculpa, não tinha percebido.
— Pois….
— Que é que queres dizer com isso?
— Nada, nada.
— Ora agora, diz. Fala!
— Caramba, falar o quê? Não percebeste.
— Já pedi desculpa.
— Sim, mas não te preocupaste com ele!
— Vou tentar.
— Caramba, que raio de amigo és tu afinal!?
— Ora bolas, não o tenho visto, só isso.

Todas as tardes ela ia ao quiosque e depois ficava a fumar um cigarro lento como se esperasse o autocarro. Mas nunca ia em autocarro nenhum, ia a pé. Atravessava o estacionamento e depois atalhava caminho pelo descampado. Tantas vezes se encontravam no trajecto que chegaram a trocar “olás”, cumprimentos de circunstância, uns quantos “até amanhã” e, um dia mais frio, de lua obscurecida, ele comentou acerca do frio e da humidade fora de época. Ela parou na conversa. Ele parou pela conversa. No dia seguinte usou a conversa para se demorarem mais pelo atalho costumeiro através do terreno baldio. Entre palavras espetou-lhe a faca bem fundo logo a seguir ao externo e abraçou-a. Não a beijou. Calou-lhe qualquer coisa na boca com a outra mão e cortou até ao baixo-ventre o mais rápido que pode. Apenas um passo atrás e depois, enquanto ela caia, já ele tinha chegado ao fim do baldio, sem pressas, atravessando a estrada."


*(excerto de texto não definitivo) - 2012

Sem comentários:

Enviar um comentário