1 de dezembro de 2013

Sim alguém




Obrigo os olhos na tarefa de olhar, obrigo os olhos a ver, tentar encontrar no horizonte aquilo que sempre julguei lá ver e tudo não são mais que pontos, os pontos onde foco os olhos, todos os pontos, como sempre, que estão onde os vejo e nunca onde os queria ter para os fazer ver.
Queria poder olhar o horizonte sem ter que me focar num ou mais pontos, queria ter como conseguir ver para lá de pontos algures naquilo que é horizonte.
Que de mim sufoco, que de mim já não posso respirar, de mim sou menos que um palhaço com falta de circo, actor sem palco, declamador sem texto, pintor sem cor.
Esfrego-me até as pálpebras irritadas arderem de dor e ficar estúpido sem achar melhorias no que vejo, no que pensava encontrar e obviamente agora não consigo ver. Desfocado, enevoado, os olhos demasiados grandes e lacrimosos para onde deveriam estar.
Não me ponho a ver, sequer verificar o horário do navio que apanhaste, não vou gastar as minhas horas no saber do teu ir, quando foste. Antes de te mexeres já tinha dito ao mestre para zarpar.
Pois que me obrigo a ver através destes olhos magoados mas não da tua ausência e sim, por muita luz, não porque o vento sopra imensa coisa, até poeiras, e que são areia e magoam até na pele.
A pele, que me suporta as veias, a pele que me contem os músculos e as veias. A pele que me reveste sem eu reparar que existe, e sim, alguém me ama, alguém me tem.


  2010



19 de julho de 2013

Nada o meu nome





Ninguém te vai amar como eu, ninguém vai não respirar, não vai comer como eu não comi, dias, noites a fio, a morrer pensando que vivia, despertar entre nuvens sem acordar, dias, noites a fio, fossilizado numa pedreira colossal de melindro e confusão.
Ninguém vai nunca dar valor ao que é ter o céu-da-boca a escamar como quem engole peçonha sem dar conta, como quem sorve, sem saber, um veneno que tira a pele da língua e a deixa em carne viva, a latejar. Como se o brilho dos teus olhos fosse a única chama antes ou depois da própria escuridão, a derradeira centelha, como se fosses o sol ou até a lua. Como se porventura fosses tu a última quimera da vida, intuito, a razão única.
Nunca alguém te vai saber como eu, nos gestos que não são teus porque os detenho como meus, nos gestos meus que adivinham os teus. Ninguém te vai gostar como eu a engolir estupores, a excretar dejectos, de amor, a tentar comer para sobreviver neste pântano agreste, mosto, a engolir qualquer coisa que leva consigo a própria essência do existir, para dentro, para onde não é suposto ir. Nem eu vou amar nada mais que sobreviva de acre e com desgosto.
Ninguém te irá escutar como eu, a ouvir vezes sem conta a mesma frase que tanto dizia quero-te, como não, vezes sem conta, a mesma estúpida canção, tantas e tantas vezes, e outras tantas que não liguei patavina porque a melodia não soletrava o teu nome. E o meu, omisso.
Ninguém te vai amar como eu, surdo para tudo, nas auroras e nas noites acordadas, eu que fiquei surdo para o mundo pois nenhum vento segredava o teu nome, nunca. E o meu? Ninguém vai amar alguém como tu, excepto eu, sim, porque sabia bem o que tinha ouvido e não quis acreditar, nunca, porque eras tu, a tua pele sem cheiro algum, os teus lábios insonsos, o vento a estalar a pele dos meus, o vento a soprar as palavras onde dizias não me gostar e tudo em ti me cuspia e desdenhava. Eu a não tomar atenção às tuas palavras. Mais nada.
Ninguém te vai amar como eu, ninguém vai não dormir, não vai comer como eu não comi, dias, noites a fio, a mover-me pensando que vivia, acordar entre sonhos sem despertar, dias, noites a fio, petrificado num glaciar descomunal de melindro e confusão.
Ninguém vai nunca saber o que é sentir o céu-da-boca pelar como quem bebe sem beber um chá a escaldar, como quem come, sem comer, um pedaço que tira a pele da língua e a deixa em carne viva e a sangrar. Como se o brilho dos teus olhos fosse a única luz antes ou depois da própria escuridão, como se a luz fosse tua, como se fosses o sol ou até a lua. Como se porventura fosses tu razão, motivo, a centelha única da vida.
Nunca alguém te vai saber como eu, nos gestos que não são teus porque os adivinho como meus, nos gestos meus que parecem os teus. Ninguém te vai amar como eu a engolir mosto, tanto mosto acre dos dias, de lava, a tentar comer para sobreviver esse amor agreste, a engolir qualquer coisa que leva consigo a própria garganta atrás, para dentro, para onde não é suposto que vá. Nem eu vou amar nada mais que resida áspera e com mágoa.
Ninguém te vai amar como eu, a ouvir vezes sem conta a mesma música que tanto dizia quero-te, como, vou esquecer-te, vezes sem conta, a mesma canção estúpida, tantas e tantas vezes, sem parar, e outras tantas que não liguei patavina porque a melodia não soletrava nenhum nome. Ninguém vai amar-te como eu, surdo para o mundo, nas madrugadas e nas noites mal dormidas, eu que fiquei surdo para tudo pois nenhum vento segredava o teu nome, nunca. O meu? Insone.
Amar-te como eu, nunca, para os pássaros que pensei capturar, querer os grilos do campo a encher-me as noites sem o teu perfume, o cheiro da tua pele, o sabor dos teus lábios, e afinal, o vento a quebrar a pele dos meus, o vento a soprar um vazio onde nem os grilos nem os pássaros, nada te sussurrava o meu nome.


2009



29 de junho de 2013

Então do Amor




    Então do amor, que é feito dele?
    Mais que se procure, achar é sempre sentir quando ele nos falta e carpir são sobras honestas, por demais aperaltadas, mas nada vale a pena como ele nos faz desesperar.
    A rapariga chora abandono e o rapaz troca de sentimento. Logo depois chocalha a cabeça carente. Outro rapaz tem vontade de se atirar de encontro às paredes porque ela disse, gosto de ti mas não te amo, vamos dar um tempo. Voltar atrás é intentar quanto o outro é fraco. Demais.
    Quem não fraqueja perante a paixão? Quem não sente as pernas bambas de amar? Há quem não vacile, há quem não hesite em continuar contabilizando gestos e movimentos como se por isso conseguisse atingir o alvo de querer amar. Mas isso é de quem não se inclui no silêncio do prazer de estar, existir, estamos todos na corrida para a eternidade mas de eternos, não temos nada.
    Tarde pensou, se o fez sequer, agora inventa um modo de se esquivar. Talvez conte com a rapariga a desesperar, chorando pelos cantos a contar às amigas o desaire... só que não vai ser assim o melhor modo de lá chegar.
    E no entanto há quem nesse poço se queira afogar. Há raparigas que jogam bem e rapazes obtusos que são jogados, apesar de arrogantes, são arrastados pelo tabuleiro da situação.
    Há sucessos garantidos, grandes relações com bastantes dados adquiridos, isto é uma verdade irrefutável, por mais contra que esteja, não interessa, é conseguido.
    Felizes? Realizados? Sim, tantos, pelos vistos! Onde ficou então o amor no meio disto, pergunto? De certeza escapou de ser considerado pois nunca foi sentido!
    E quem sou eu para refutar tais factos que produzem valentes resultados?
    O que apenas digo acerca disso é tão simples como esquecer uma vírgula ou até um acento. Não menosprezando quem não lê. Sim, porque sabem ler mas, talvez tenham aversão às palavras em escrita, talvez dê muito trabalho, ler, reler, mais fácil é dizer. E quem afirma disto, como, “não vou estar para aqui a ler isto porque me dá sono”, e depois apressam-se a comprar o matutino jornal desportivo que devoram num ápice, assim que podem, e elas, dizendo o mesmo e que sorvem, absorvem e até regurgitam, revistas de programação televisiva com resumos de profícuas telenovelas e mini séries, outras de coscuvilhices com a vida dos outros que aparecem fotografados como famosos. Que fazer? Que dizer? Se calhar falhei, não sei.

    Pois, e do amor, quem sabe?
    No entanto, era acerca disso que se falava, e mesmo com viagens, tudo se resume ao pequeno estado, mero facto de argumentar contra o próprio, escusado, desejando nunca ter feito, agido como tal, vexado.
    A rapariga ficou sozinha, não foi trocada, não, ninguém troca ninguém. O rapaz deixou-a quando lhe tinha depositado amor, pensava ela, ora ele… talvez nada. O outro amou… mas esqueceu-se de sentir qual o amor dela. E para ela, isso não era nada.
    Ora o amor pode ter lados mas não tem só dois. Mas o amor não é uma figura, não é um objecto, tem espaços. O amor pode ter polos e até pode existir sem nada ter. O amor tanto pode ser uma páscoa como um carnaval, um luar de Agosto ou sol de Outono. Estamos todos na corrida para a eternidade mas de eternos, nada temos. E do amor? Acho que devemos senti-lo, porque dele, afinal, não sabemos nada.



2005

28 de junho de 2013

Sem Palavras



Escrever não é apenas gravar palavras. Escrever até por vezes é menos em palavras o que a escrita permite que seja nas palavras que urgem, sonoras, gritantes no pensar e que até chegarem braço afora até aos dedos se perdem, modificam, desvanecem, torturam-se, mudam, transformam-se, modificam-se, até desaparecem nas frases erigidas e que se pensam terminadas.
É uma vasta liberdade que vicia e a que se regressa com vontade de mais. Quem escreve por amar, de escrever não se sacia

Um poema não é apenas empilhar frases de curtas palavras com ou sem métrica.
Poema é paixão gravada com gestos ou letras!
Poema é suspiro, arfar de respiração, rufar de tambores ou silencio e calma, tanto de placidez como raiva e sangue a jorrar por gritos ou carícias de luar na pele que ferve desejo luxuriante e toque real de carne. Ou um gelo brilhante, um frio branco e ofuscante. Um canto onde a chuva caia e a alma levite.

Escrever não é apenas desenhar letras ao correr da vontade. Escrever até é por vezes menos de querer do que no papel ou noutro qualquer lado seja o que for que fique gravado. Escrever por fácil que seja de tormenta ou dilúvio que jorre das palavras, é tanto de harmonioso e simples como de trabalhoso e suado. Aridez que seca nos lábios o devir da paixão. Nascente cristalina e fresca mas prenhe de esforço e transpiração.
Entre as facas que se espetam na garganta e as flores que jorram das mãos, escrever é uma aventura de sensações que delícia e extasia. Entanto imagina dores onde elas não existem.

Um poema não é apenas um empilhar de palavras, poemas são escritas de alma. Poesia é sentir, saber dizer o que não se ouve, escrever o que não é lido.
Escrever é tanto preencher e moldar volumes como dissecar, descarnar até expor os ossos, numa espécie de procura anatómica. Uma incessante busca que por vezes camufla e adorna. A busca que esconde. A ilusão de verdade que faz truques com a ficção.
Com ou sem métrica, repito: é paixão.


2013

11 de junho de 2013

Pontuação




Um vento estúpido picava-lhe nos olhos a vontade de não ter pressa, não querer acelerar o passo, não abdicar das horas pois que até lhe sabiam bem aqueles minutos, por vezes curtos, mas agora irritava-o a necessidade de se apressar, contrariar a vontade sem ter pressa, porque lhe picava nos olhos o vento, agreste, um vento estúpido e desconexo porque de inverno, adverso, e findava a primavera. Findava a primavera e os olhos não se tinham refeito ainda da voragem dos pólenes, das irritações cutâneas, das aguadilhas ridículas, narizes inflamados, constipações grotescas, findava a primavera que não parecia ter vindo quando dizia ter chegado na época em que já deveria ter dito adeus, num degelo, um fresco de água em qualquer riacho, mas não, ainda debitava humores quando já deveria ter finado.

Uma questão de nada ficava como se um sentimento fosse aquela união de palavras, viscosas, não em frases para um discurso saudável mas, pegajosas, as palavras, unidas num estranho húmus a tresandar de pus. Uma questão de nada ficava como um sentimento apodrecido na sombra húmida das locuções enclausuradas, aquela sombra onde lagartas proliferavam, os vermes da omissão eclodiam, e as letras, das palavras, eram halos da boca fechada no correr do tempo, agora putrefacta de silêncio.

Um vento irritante e descabido atirava folhas soltas, pelo chão, soprava papéis, lixo, como se de um outono esquecido. Naquela ironia de tempo que lhe fustigava a cara, abrigou-se para acender um cigarro. Irritava-o não ter mais tabaco. Olhava para o maço em mau estado e resmungou entredentes por ter apressado o passo, por ter até corrido devido ao vento estúpido, e não ter parado na tabacaria, não ter parado um instante, tido um ápice de alheamento para com o tempo e não ter pensado, um instante, um momento. Irritava-o tanto isso como as pessoas tossirem alto sem porquê e a fungarem constantemente como se de sinais ortográficos se tratasse em frases silenciosas e abstractas. E o vento da ira soprava sem nexo a estúpida primavera, atirando folhas e lixo, soprando mil e uma coisas, disperso, manejava o corpo dorido nas pernas que lhe pediam descanso, mas o vento, aquele sopro enorme, incoerente, cuspia-lhe sarcasmos, escarrava azedume numa cólera surda.

Uma visão de lua opaca tombava no lusco-fusco do fim, emergente, da tarde, o cair da tarde, o peso viscoso do começo da noite, o crescente entardecer no suicídio da tarde. Uma questão de nada ficava como um quarto minguante apodrecido na sombra húmida das masmorras, nas palavras agrilhoadas, bolorentas e feitas em lagartas. Vermes de palavras sem luz, as frases acorrentadas adoeciam lentamente de silêncio, putrefactas, como pontuação.


25 de abril de 2013

Recorte




Um acorde.
Uma situação comum que não deixa de ser parva, de quem vai numa coisa de nada mas também uma e mais outra coisa, sobremesa antes do aperitivo-sobremesa antes do aperitivo-sobremesa antes do aperitivo-sobremesa antes do aperitivo-sobremesa antes do aperitivo-sobremesa antes do aperitivo-sobremesa antes do aperitivo-coisa, seria após ser o a que nada de mais seria antes do que foi. Aperitivo ou sobremesa? Mesmo assim, nada vai responder a nada, o que de alguma coisa as letras possam dizer é uma pergunta. Recordas-te? Recordar é uma vantagem, um descanso mas nem sempre sossego. O desassossego de fazer lembrar o recordar do que queremos dizer por vezes é demais cansativo.
Verdades.


2011

25 de janeiro de 2013

Via



Esperando que um breve acto de amabilidade me traga um sorriso ao ouvido, encolho-me na ilharga de um beco, em tumulto comigo próprio, atabalhoado. Desejo que não me aconteça nada que faça de conta estar bem porque não é nada, desejo que o fundo deste beco seja apenas mais uma esquina virada.
Caminho para fora da sombra na esperança que a luz me traga aquela voz límpida como a chuva de cristal que molhou os vidros da minha casa. Que não fica neste beco, não fica por aqui para estes lados, mas não me larga.
Por baixo dos meus pés ecoa o chão que eu pensava sólido, de macadame e com camadas de pedra intervaladas com terra. Supostamente uma estrada.
Espero que o meu desejo apenas seja isso mesmo, uma vontade ou aspiração, que nada me aconteça na ilharga dos passos que faço no que dou mais para os outros que para mim próprio e que não é o facto de sentir que afinal, realmente, não somos nada.
Caminho para fora da sombra na esperança de continuar, mais nada. Com quem, só, sei lá, acho que é uma teimosia continuar vivo e já não me detenho a perguntar. Sei tanto disso como já o senti como se diz que não sabemos nada. Que não fico mesmo estando parado é o que tento fazer sempre que me reparo.
Por baixo dos meus pés por vezes a chuva molha-me até a alma, por baixo dos meus pés acontecem caminhos que não dou conta mas que são como são porque os faço.


Agosto - 2005

27 de dezembro de 2012

Um dia atrás




  Ontem amanheci diferente.
  Só dei conta quando me apercebi que os meus passos estavam mais leves,   soltos, singulares do costume.
  Respirei fundo e senti-me límpido como o céu nas alturas em que me saudava num azul suave e translúcido nos dias em que chovera de noite e a carga das nuvens se esvaíra finalmente. Mas não, nenhuma chuva tinha caído e no entanto o astro estava limpo. O ar suave e puro.
  No meu peito apenas as tenazes da saudade me fizeram ansiar o tempo até chegar perto dela. Um saudar "bom dia" foi suficiente para saber que não estava dormente. Não sonhara, fora verdade, por isso me sentia mudado, diferente, como transformado.
  Dei por mim a sorrir para ninguém, sem estar a olhar para lado algum, sem ver nada porque estava perdido num voo sem coordenadas. “Senti-me dirigir a ti, mais nada!”
  Em redor tudo emergia e confluía no burburinho costumeiro e eu pouco ligava. Que estranho beneplácito ante tanta ferroada, tanto diz-que-disse, tanto mais de menos de mim que me tinha obrigado a ignorar e a criar uma rotina, um hábito.
  Senti de imediato a tua falta.
  Depois disseste, depois falaste, “vou ter contigo daqui a nada”, e o meu coração disparou rumo à verdade. Não que duvidasse, mas foi sentir que a tua e a minha eram a mesma ansiedade.
  Começámos um livro apócrifo e ao contrário. Com palavras. Com silêncios. Com imagens. Com inépcia e torvelinho. Com olhares e beijos, suspiros e anseios. Connosco… de amor feito.



2011



15 de outubro de 2012

Riba




  Há alturas da vida em que apenas olhamos para baixo e o chão parece-nos por demais perto, tanto que nos sentimos parte dele, integrantes, as órbitas repletas de terra, a pele cravejada com o saibro dos dias e a boca infestada pelo húmus pútrido da tristeza.
  Noutras vezes olhamos em redor e não tacteamos nada nem ninguém, tudo é uma imensidão deserta, uma quietude seca e morta, sequer uma brisa nos toca. Espreitamos para além do que pensamos visualizar como horizonte e o que deveria ser uma linha é um rasto disforme e gasoso que nos cega de miopia. Para cima, onde deveriam estar o sol ou a lua, nada se enxerga. Ao que parece nuvens ou deveriam ser gotículas de água condensada, nem sólidas, líquidas ou mistas, altas, médias ou baixas, nada se percebe. Poeira apenas. É uma densa e pesada escuridão que nos contém como que num cubo estanque e sufocante.
  Para cima ou para o lado é uma distância incomportável. Dizer qualquer coisa é como destacar a língua dum rigor mortis pois nada bule ao redor sequer, nada sobrevive numa atmosfera tóxica. E parece que se está no vácuo.
    
  Mas um dia esfregamos as pálpebras com violência, sopramos as teias que nos colam as pestanas e abrimos os olhos piscando-os com dor pela cor que nos ofusca e atrai em frente. O reflexo do coração atravessa a parede e devolve-nos o amor de nós próprios, devolve-nos o céu, o mar, escrito em sol com tinta de lua… devolve-nos a vida.


2012

24 de agosto de 2012

No silêncio desta noite quente ainda não de verão*





    "No silêncio desta noite quente ainda não de verão mas de primavera que mal chegou a ser, de andorinhas tardias e pólenes desorientados, até o som estava oco e parvo. Neste calor, de silêncio cavado na maresia suave que o vento, ora sorvia, ora soprava, nesta noite, até o descompasso do coração não lhe soava bem. Não.


— Viste ele?
— Ontem?
— Sim.
— Não. Aliás, já não o vejo há uns quantos dias.

No silêncio, com esta noite sentia as mãos, não lhe doía o corpo, sentia as pernas, não lhe custava mexer da cintura para baixo, andava de um lado para o outro sem que as grilhetas do tempo pesassem ao arrastar as palavras, ao arrastar o cansaço das palavras, sem que o tempo fosse de chumbo, ferro, uma bola de ferro sem os remates do grilhão da vida que prende aos pensamentos, nada. Não. No silêncio desta noite de primavera que o verão prostituía ele respirava sem sequer ligar ao som descompassado do coração que detinha, para lá de nada, o peito era uma contradição.

— Sabes dele?
— Como assim?
— Ora… viste, falaste com ele?
— Não, não, desculpa, não tinha percebido.
— Pois….
— Que é que queres dizer com isso?
— Nada, nada.
— Ora agora, diz. Fala!
— Caramba, falar o quê? Não percebeste.
— Já pedi desculpa.
— Sim, mas não te preocupaste com ele!
— Vou tentar.
— Caramba, que raio de amigo és tu afinal!?
— Ora bolas, não o tenho visto, só isso.

Todas as tardes ela ia ao quiosque e depois ficava a fumar um cigarro lento como se esperasse o autocarro. Mas nunca ia em autocarro nenhum, ia a pé. Atravessava o estacionamento e depois atalhava caminho pelo descampado. Tantas vezes se encontravam no trajecto que chegaram a trocar “olás”, cumprimentos de circunstância, uns quantos “até amanhã” e, um dia mais frio, de lua obscurecida, ele comentou acerca do frio e da humidade fora de época. Ela parou na conversa. Ele parou pela conversa. No dia seguinte usou a conversa para se demorarem mais pelo atalho costumeiro através do terreno baldio. Entre palavras espetou-lhe a faca bem fundo logo a seguir ao externo e abraçou-a. Não a beijou. Calou-lhe qualquer coisa na boca com a outra mão e cortou até ao baixo-ventre o mais rápido que pode. Apenas um passo atrás e depois, enquanto ela caia, já ele tinha chegado ao fim do baldio, sem pressas, atravessando a estrada."


*(excerto de texto não definitivo) - 2012