11 de junho de 2013

Pontuação




Um vento estúpido picava-lhe nos olhos a vontade de não ter pressa, não querer acelerar o passo, não abdicar das horas pois que até lhe sabiam bem aqueles minutos, por vezes curtos, mas agora irritava-o a necessidade de se apressar, contrariar a vontade sem ter pressa, porque lhe picava nos olhos o vento, agreste, um vento estúpido e desconexo porque de inverno, adverso, e findava a primavera. Findava a primavera e os olhos não se tinham refeito ainda da voragem dos pólenes, das irritações cutâneas, das aguadilhas ridículas, narizes inflamados, constipações grotescas, findava a primavera que não parecia ter vindo quando dizia ter chegado na época em que já deveria ter dito adeus, num degelo, um fresco de água em qualquer riacho, mas não, ainda debitava humores quando já deveria ter finado.

Uma questão de nada ficava como se um sentimento fosse aquela união de palavras, viscosas, não em frases para um discurso saudável mas, pegajosas, as palavras, unidas num estranho húmus a tresandar de pus. Uma questão de nada ficava como um sentimento apodrecido na sombra húmida das locuções enclausuradas, aquela sombra onde lagartas proliferavam, os vermes da omissão eclodiam, e as letras, das palavras, eram halos da boca fechada no correr do tempo, agora putrefacta de silêncio.

Um vento irritante e descabido atirava folhas soltas, pelo chão, soprava papéis, lixo, como se de um outono esquecido. Naquela ironia de tempo que lhe fustigava a cara, abrigou-se para acender um cigarro. Irritava-o não ter mais tabaco. Olhava para o maço em mau estado e resmungou entredentes por ter apressado o passo, por ter até corrido devido ao vento estúpido, e não ter parado na tabacaria, não ter parado um instante, tido um ápice de alheamento para com o tempo e não ter pensado, um instante, um momento. Irritava-o tanto isso como as pessoas tossirem alto sem porquê e a fungarem constantemente como se de sinais ortográficos se tratasse em frases silenciosas e abstractas. E o vento da ira soprava sem nexo a estúpida primavera, atirando folhas e lixo, soprando mil e uma coisas, disperso, manejava o corpo dorido nas pernas que lhe pediam descanso, mas o vento, aquele sopro enorme, incoerente, cuspia-lhe sarcasmos, escarrava azedume numa cólera surda.

Uma visão de lua opaca tombava no lusco-fusco do fim, emergente, da tarde, o cair da tarde, o peso viscoso do começo da noite, o crescente entardecer no suicídio da tarde. Uma questão de nada ficava como um quarto minguante apodrecido na sombra húmida das masmorras, nas palavras agrilhoadas, bolorentas e feitas em lagartas. Vermes de palavras sem luz, as frases acorrentadas adoeciam lentamente de silêncio, putrefactas, como pontuação.


2 comentários:

  1. O vento volta sempre, tal como o mar não consegue levar-nos as mágoas para sempre. E sabes, nunca deixa de haver estrelas no céu, mesmo estando este longe e escondido entre a chuva e as nuvens negras que o cobrem como se de um tesouro se tratasse. E mais grave é não saber como estás, não saber como estou, não saber.

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  2. ...e entanto estamos tão perto de um simples "olá", sequer ao telefone. Não saber é do pior que nos pode suceder.

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